quarta-feira, 29 de abril de 2009

Interditar a Memória


interditar a memória.

Tornar a inteligência bela é voltar à não inteligência.

Só é belo o que não é inteligente; porque o inteligente é o não imediato: um passo atrás ou à frente, enquanto o belo é o instante, a superfície tão fina que frente igual a COSTAS, o início é o mesmo que o FIM.

interditar a memória.

a memória é ocupação do espaço.

a memória é o não imediato,

a memória é o inteligente.

O Corpo inteligente é inteligente mas não é corpo porque corpo é estar presente, agora, por completo, e o inteligente, repito o inteligente é o não-imediato, um passo atrás ou à Frente.

a dança não tem Memória.

A criatividade não tem Memória.

O Corpo começa agora no momento que acaba.

O Corpo começa no mesmo sítio que acaba.

O corpo é 1 sítio e 1 tempo e depois 1 outro sítio e 1 outro tempo que não recordam o sítio e o tempo anteriores.

CORPO AMNÉSICO.

Esqueceu porquê aqui e agora.

Aqui e agora e antes nada.

Aqui e agora e depois nada.

CORPO AMNÉSICO e sem projectos.

Cortar-lhe a cadeira dos velhos e o monte donde se vê o FUTURO dos NOVOS.

Um CORPO sem cadeira (não há cansaço porque antes não existiu) e UM CORPO sem VISÃO (o FUTURO é 1 espaço onde ainda não se chegou).

Sem visão não há nenhum lado onde se chegar, e sem cadeira não há sítio onde descansar, portanto só resta ao corpo ser todo aqui e agora e só resta ao corpo dançar.

(Corpo a quem cortaram a cadeira e os olhos).

Gonçalo M. Tavares

terça-feira, 28 de abril de 2009

Festa do Silêncio


Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.

António Ramos Rosa

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Acordar Tarde


tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

Al Berto

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Esta... Finalmente!


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Esta voz com que gritei às vezes


Esta voz com que gritei às vezes
não me consola de só ter gritado às vezes.

Está dentro de mim como um remorso, ouço-a
chiar sempre que lembro a paz de segurança estulta
sob mais uma pedra tumular sem data verdadeira.

Quando acabava uma soma de silêncios,
gritava o resultado, não gritava um grito.

Esta voz, enquanto um ar de torre à beira-mar
circula entre as folhas paradas,
conduz a agonia física de recordar a ingenuidade.

Apetece-me explicar, agora, as asas dos anjos.

Jorge de Sena

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Nós Somos


Como uma pequena lâmpada subsiste
e marcha no vento, nestes dias,
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo.

Caminhamos, um país sussurra,
dificilmente nas calçadas, nos quartos,
um país puro existe, homens escuros,
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro,
uma terra existe nesta terra,
nós somos, existimos.

Como uma pequena gota às vezes no vazio,
como alguém só no mar, caminhando esquecidos,
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados,
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento,
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor,
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos,
uma voz num portal e a manhã é de sol,
nós somos, existimos.

Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos.

António Ramos Rosa

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Vida... Sonho Absurdo...


Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 3 de abril de 2009

A Noite


Em tudo que já fomos está o que seremos
No fundo desta noite tocam-se os extremos
E se soubermos ver nos sonhos o processo
Os passos para trás não são um retrocesso

A noite é um sinal de tudo quanto fomos
Dos medos. Dos mistérios. Das fadas e dos gnomos
Da ignorância pura e da ciência irmã
Em que sendo passado já somos amanhã

A noite é o espaço vago, o tempo sem história
Em que as perguntas nascem dentro da memória
Em tudo que já fomos está o que seremos
Mas cabe perguntar: foi isto que quisemos?

Em tudo que já fomos está o que deixamos
No fundo das marés. Nos portos que tocamos
O rumo desvendado. O preço da bagagem
É tudo quanto resta para seguir viagem

A noite é parideira da contradição
Que existe em cada sim que nos parece não
Olhando para nós. Os grandes dissidentes
No meio da luta entre lemes e correntes

Será esta viagem feita pelo vento
Será feita por nós, amor e pensamento
O sonho é sempre sonho se nos enganamos
Mas cabe perguntar: como é que aqui chegamos?

Em tudo que já fomos estão os nossos mortos
E os vivos que ficaram entram nos seus corpos
Na noite do amor, na noite do sinal
Naufrágio de fantasmas na pia baptismal

A noite é o impreciso e escuro purgatório
Que alinha as nossas almas no seu dormitório
A culpa dos heróis é serem sempre poucos
Acaso somos mais, ou tão somente loucos

Temos que descasar a culpa e o prazer
No que fizemos ou deixamos de fazer
Para reconstruir os corações cativos
Mas cabe perguntar: acaso estamos vivos?

Em tudo que já fomos há um sonho antigo
Conversa universal de cada um consigo
São sombras e brinquedos, tudo misturado
E o vago sentimento de nascer culpado

Será um sonho absurdo este olhar p'ra dentro
E o nosso destino só servir de exemplo
Andamos a fugir à frente desta vida
Mas cabe perguntar: existe uma saída?

José Mário Branco