quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

o homem em eclipse

Ora foi que certo dia
o homem eclipsou-se.

– A data! Digam a data,
a datasinha, faz favor!

– Qual data! Foi por decreto
que o homem se eclipsou,
foi só manobra, espertice,
um, dois, três e, pronto, é noite,
que nem a Lua apareça
seja de que lado for!

Uns seguraram-se logo,
eram espertos bem se viu,
outros caíram ao mar
com cabeça pernas e tudo.
Quanto a mim perdi a calma,
fiquei desaparafusado,
tradição, cultura, estilo,
certeza, amigos, fatiota.
Tudo fora do seu sítio
-um desaparafuso terrível!

Segurem-me, camaradas,
sinto pernas a boiar,
cheiro fantasmas, enxofre,
estou aqui mas posso voar,
o parafuso da língua
vai partido, vai saltar.
Agarrem-me!Agarra!Pronto.
Pari o mais leve que o ar.

Mário Cesariny

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Vai-te, Poesia!

Vai-te, Poesia!

Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia!

Não quero cantar.
Quero gritar!

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Don't Ever


(c) fréya

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

As Palavras Interditas

Os navios existem e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E abrem-se janelas
mostrando a brancura das cortinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas minhas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens vivas, desenhadas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Vivam Apenas

Vivam, apenas
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes

Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!

José Gomes Ferreira