sexta-feira, 29 de maio de 2009
Walking Around
Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
abatido, impenetrável, como um cisne de feltro
vogando numa água de origem e de cinza.
O cheiro das barbearias faz-me gritar em lágrimas.
Eu só quero um descanso de pedras ou de lã,
eu só quero não ver as lojas e os jardins,
mercadorias, óculos, ascensores.
Acontece que me canso destes pés, destas unhas,
e do cabelo e da sombra.
Acontece que me canso de ser homem.
E no entanto seria delicioso
assustar um notário com um livro cortado
ou dar morte a uma freira com um soco no ouvido.
Seria lindo
ir pela rua com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.
Não quero continuar a ser raiz nas trevas,
vacilante, estendido, tiritando de sono,
para baixo, nas tripas molhadas da terra,
absorvendo e pensando, comendo dia após dia.
Não quero para mim tanta desgraça.
Não quero continuar raiz e sepultura,
subterrâneo solitário e adega com mortos,
transido, morrendo de desgosto.
Por isso a segunda-feira arde como o petróleo
quando me vê chegar com esta cara de cárcere
e uiva no seu decurso como roda ferida,
e dá passos de sangue quente em direcção à noite.
E empurra-me para certos cantos, certas casas húmidas
para os hospitais onde os ossos saem pela janela,
para certas sapatarias que cheiram a vinagre,
para ruas espantosas como fendas.
Há pássaros cor de enxofre com horríveis intestinos
pendentes da entrada das casas que eu odeio,
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deviam ter chorado de vergonha e de espanto,
há guarda chuvas em todo o lado, e veneno, e umbigos.
Eu passeio com calma, com olhos, com sapatos,
com fúria, com esquecimento,
passo, atravesso escritórios e centros ortopédicos,
e pátios onde há roupa a secar num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.
Pablo Neruda
terça-feira, 26 de maio de 2009
Um rio de luzes
quinta-feira, 21 de maio de 2009
Da Vida... não Fales Nela
Da vida... não fales nela,
quando o ritmo pressentes.
Não fales nela que a mentes.
Se os teus olhos se demoram
em coisas que nada são,
se os pensamentos se enfloram
em torno delas e não
em torno de não saber
da vida... Não fales nela.
Quanto saibas de viver
nesse olhar se te congela.
E só a dança é que dança,
quando o ritmo pressentes.
Se, firme, o ritmo avança,
é dócil a vida, e mansa...
Não fales nela, que a mentes.
Jorge de Sena
terça-feira, 19 de maio de 2009
Faz-me o favor...
segunda-feira, 18 de maio de 2009
Vestígios
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se
onde se pode - num vocabulário reduzido e
obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
Al Berto
sexta-feira, 15 de maio de 2009
uma certa quantidade
Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade
Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião
Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá
E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar
Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro
Mário Cesariny
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Ser
Cansada expectativa tão ansiosa
que ser só eu na minha vida espalha!
Na longa noite em que se tece a malha
do que não serei nunca, fervorosa
minha presença rútila e curiosa
arde sombria como um arder de palha,
curiosa apenas de saber se goza
o voar das cinzas quando o vento calha
lá onde o levantá-las é verdade.
Inutilmente se mistura tudo,
que a mesma ansiedade, já esquecida,
de novo recomeça. Mas quem há-de
contrariá-la? Eu não, que não me iludo:
Viver é isto, quando se é só vida.
Jorge de Sena
quarta-feira, 13 de maio de 2009
estação
Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça
Mário Cesariny
terça-feira, 12 de maio de 2009
Interroguemos o silêncio
Interroguemos o silêncio
questionemos a linguagem,
neste absurdo código
os actos carecem de moral.
A loucura quer ser religião e espírito
vocação pura do destino.
Mas não há lugar no cenário
onde os actores encontrem o seu descanso,
não prescreve a função
enquanto o público aplaude.
Todo o fim requer um princípio.
E se todo o princípio obedece a uma causa,
que causa é a de aqueles
que carecem de princípios?
Uberto Stabile
sexta-feira, 8 de maio de 2009
Estende a tua mão
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