quinta-feira, 30 de julho de 2009

X


Outros predadores. Outras palavras.
Mas o mesmo céu.

IX


Escapa-nos totalmente o sentido do que está para vir. Porém,
até ao último momento poderemos crer que iremos conseguir
qualquer vantagem. Só à noite poderemos compreender.

VIII


Quando tudo parece possível
tudo pode ter interesse.

VII


Tudo na vida é fluxo.
Toda a defesa é um convite ao ataque.
Todos os que estão na defensiva defrontam fantasmas.

VI


pedra que rola não acolhe musgo

V


o medo vai ter tudo

IV


Por favor, dêem-me ar, ar e ar
em vez de um metro quadrado
na lua

III


Primeiro dia: nada. Dia seguinte: tudo.
Ainda ontem: reduzir tudo a nada.
Hoje: nada mais há.

II


Não peças nada, não esperes nada, não mantenhas nada.

I

Não vos dais conta de que somos jardineiros e não flores.

terça-feira, 14 de julho de 2009

As mãos pressentem...


As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar

ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada

Al Berto

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Independência


Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!

Jorge de Sena

domingo, 12 de julho de 2009

O que é o espaço?


O que é o espaço
senão o intervalo
por onde
o pensamento desliza
imaginando imagens?

O biombo ritual da invenção
oculta o espaço intermédio
o interstício
onde a percepção se refracta

Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível

Ana Hatherly

terça-feira, 7 de julho de 2009

Do que Nada se Sabe


A lua ignora que é tranquila e clara
E não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias
Ao abstracto xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano,
Breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta
Que eu sou? Que cume pode ser a meta?

Jorge Luis Borges

segunda-feira, 6 de julho de 2009

de profundis amamus


Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny