quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Chão

O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a húmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 24 de novembro de 2009

espero

O tempo passa mas eu espero por ti.

Lao Tse

A Palavra


Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Vigília


Paralelamente sigo dois caminhos
Abstrato na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor mundo
Está por descobrir. Não seque a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado de oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens noturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona de água
E precipitam asas na esteira de luz.
Da vida nada senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.

Ruy Cinatti

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

tocata


quando tu tocas debussy
chove extraordinariamente
o sol as casas levemente doira
mas na saleta está-se bem
fazes sempre sempre assim!

por mim
sinto um duende benigno que sorri
não bem de ti!
nada de debussy!
mas do igual da hora
de sempre chover
de estar sempre frio lá fora
quando tu tocas debussy.

Mário Cesariny

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Pequena Elegia Chamada Domingo


O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.

Hoje os montes e os rios
e as nuvens
não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios…)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

De tudo


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do meu amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Moraes

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Não és os Outros


Não há-de te salvar o que deixaram
Escrito aqueles que o teu medo implora;
Não és os outros e encontras-te agora
No meio do labirinto que tramaram
Teus passos. Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates ou o forte
Siddharta de ouro que aceitou a morte
Naquele jardim, ao declinar o dia.
Também é pó cada palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
Pela boca. Não há pena no Fado
E a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. E és cada solitário instante.

Jorge Luis Borges

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A Minha Solidão

[Durante dias andei a ruminar estes versos]

A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...

...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.

...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.

...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.

...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.

...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.

Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...

...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Ortofrenia


Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém

Mário Cesariny

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Agarrei no ar


Agarrei no ar um véu
esmaecido de azul,
igual ao azul do céu
iluminado pela lua.

Eu passo a vida a sonhar
iluminado pela lua.

Ruy Cinatti