sexta-feira, 18 de junho de 2010

Passado, Presente, Futuro

Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.

José Saramago

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço!

Mas não.

Lá está o sol do costume
com a exactidão
duma bola de lume
desenhada a compasso...

...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...

e desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.

Ah! Como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?

José Gomes Ferreira

domingo, 30 de maio de 2010

Que domingo solene, ocioso e lasso

Que domingo solene, ocioso e lasso!
Tão triste; o sol inunda a tarde toda,
Festivo como um guizo numa boda
Onde a noiva morreu, desfeita em espaço...

Medeia a eternidade, em cada passo
Que, sem intuito, dá quem passa; à roda
Parece dormir tudo; e incomoda,
Ponderável, no ar, um embaraço...

Toda a tristeza do domingo à tarde.
Sobe dos homens para o céu, que arde,
O apego à vida dum olhar que morre.

Sombras sugerem aflições incertas...
E das janelas sôfregas, abertas,
Morno, o silêncio como num pranto escorre...

Reinaldo Ferreira

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Ninguém venha me dar vida

Ninguém venha me dar vida,
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferido,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser,
e não quero me encontrar,
que estou dentro de um navio,
que sei que vai naufragar,
já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.
Corações, por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e os corais.
Fim ditoso, hora feliz:
guardai meu amor sem preço,
que só quis quem não me quis.

Cecília Meireles

terça-feira, 18 de maio de 2010

O essencial é ter o vento

O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa,
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros, menos sagazes
E mais convencionais,
Te dirão que o preciso, o urgente,
É ser o jogador mais influente
Dum trust de petróleo ou de carvão.
Eu não:
O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para requiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo,
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos de um concorrente
Incompetente.

Reinaldo Ferreira

terça-feira, 11 de maio de 2010

Partimos. Vamos. Somos.

Pelo sonho é que vamos,
Comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não frutos,
Pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
Que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
Com a mesma alegria,
ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

-Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

Reinaldo Ferreira

terça-feira, 27 de abril de 2010

Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo

Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado

Ruy Belo

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O beijo é já perder-te

A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que te não vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.

António Ramos Rosa

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Não sejas

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
Não queiras ser o de amanhã.
Faz-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue.
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade...
É a eternidade...
És tu.

Cecília Meireles

terça-feira, 6 de abril de 2010

quarta-feira, 31 de março de 2010

Sumo na vida. Rumo na vida. Desejos

...para a menina tangerina...

sexta-feira, 26 de março de 2010

O amor é o amor - e depois?

O amor é o amor - e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?

Alexandre O'Neill

segunda-feira, 22 de março de 2010

Às vezes se te lembras procurava-te

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo

sexta-feira, 19 de março de 2010

Quero

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até à exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.

Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 18 de março de 2010

Todas as metáforas são pouco

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo olhos, lábios, dentes.

Reinaldo Ferreira

quarta-feira, 17 de março de 2010

Ainda

Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 16 de março de 2010

pernoitas em mim

pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória...amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

Al Berto

quinta-feira, 11 de março de 2010

diz-me

Na grande confusão
deste medo
deste não querer saber
na falta de coragem
ou na coragem de
me perder me afundar
perto de ti tão longe
tão nu
tão evidente
tão pobre como tu
oh diz-me quem sou eu
quem és tu?

António Ramos Rosa

quarta-feira, 10 de março de 2010

A vida só é possível reinventada.

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projecto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles

terça-feira, 9 de março de 2010

Imaginar, primeiro, é ver

Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.
Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.
Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente,
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.


Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.

Alexandre O'Neill

segunda-feira, 8 de março de 2010

Chove...

Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira

Coisas



cardboardlove.com

domingo, 7 de março de 2010

Qualquer Tempo

Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.

Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 4 de março de 2010

Devias

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Eugénio de Andrade

sábado, 27 de fevereiro de 2010

um canto telegráfico

Este passo encontrado que nos guia entre as mesas
este chegar tão tarde às pontes levadiças
para uma exposição de rosas no nevoeiro
este eterno trabalho de dadores de sangue
é o que mais nos defende do massacre
vá recomecemos
do ocasional gemido do fantasma eriçado
as notas principais:
pendurar numa árvore o rio capitoso de tantas lágrimas
descer de chapéu na cabeça até ao patamar
dizer para sempre aos cabelos da noite
que basta descalçar lentamente um sapato
que basta ter achado atrás do travesseiro o relâmpago azul do contacto com as mãos
ou ter ido seguro por lençois de linho a devastar de arbustos as solidões do teu corpo
do qual recordo ora as mais vivas carícias ora um mar interior de grande obscuridade
feito de todo o mármore do mundo de toda a areia que sobra do mundo erguido para o silêncio que estrutura o dorso de todas as paisagens belas frágeis do mundo
descer depois já a chorar de medo e a tremer de amor todo o lado de cá
chegar de rosto na água a aparecer às janelas
com um capuz no sítio da cabeça

ah um automóvel!

Nós vivemos há muito nesta espécie de caverna bruxa
alta pelo silêncio que nos veste
real pela erosão de um sol peculiar que ilumina o recinto intermitentemente
um sofá que não é para aqui chamado
também podia servir de modelo à ampla descrição do fenómeno a luz
que nos excede e emite nos liberta e sufoca
depois há um que entra a perguntar o que é
e tudo assume um pouco o ar policial
dos cascos em fuga pela realidade fora

Merecemos o nosso passo de bichos de dilúvio
merecemos que nos ceguem todos os dias
merecemos estar sozinhos rodeados de prédios
merecemos ter connosco toda a vontade
fim princípio moleza dos costumes
assassinatos histórias de basílicas
e até porque não dominicais
mas como não gritar à passagem triunfal do Grande Monstro Parado
como sermos bem nós e a localidade
muito bem disfarçada de necessidade
pela subterrânea passagem que é nossa
como não aspirar a um ponto de espírito um ao outro
em que a deflagração cristalize uma rosa ascensional
e como são as palavras para dizer que te amo
fantasma
cidade doida
braço contra as nuvens
alta promessa minha sempre em vão corada

Apetece contar uma história tão estranha que as pessoas saiam aos tropeções de casa
apetece anunciar com voz fanhosa
cronologicamente cruelmente
todas as horas do pasmo
todos os dias do calendário do medo
todas as terças-feiras da angústia de haver rosas
todo o fumo e toda a raiva de um relógio de sol
Tomaram-nos o pulso e ficámos febris
com o amor que não há a inundar-nos a cara
este amor não esquece este amor
não se esquece há um rato
na tua camisa o céu brilha o céu está
os amantes retomam os seus quartos
num plácido e extenuante recolhimento gráfico
mas não basta encostarmo-nos à parede
para que tudo ressurja e vestir de novo as fardas
a imaginação ainda não é
para servir de pedreiro A Imaginação
as radiosas salas superiores
através da cidade nos jardins nas gárgulas
abre-se o leque das mil cenas celestes
com o homem na ponte cor de rosa velho
as mãos na água a cabeça no mar

Onde é esta partilha este verdete
esta limalha que nos sobem à boca
onde é esta verdade que empurra as estrelas
para intranspossíveis mundos transportadores
uma última vez despedaçados amemos
amemos a nossa pedra o nosso olhar de mil cores
o mármore sem remédio das figuras bloqueadas
como são as crianças e os gigantes
uma última vez e mais estranhos
mais desertos de enigmas mais atrozmente firmes
sob a opulenta folhagem dos soluços

Dir-te-ei que os meus dias foram os teus dias o teu leito o meu leito este corpo este mar
dir-te-ei que há uma rosa oculta num jardim e que ela é ma e outra como nós fomos
estas pétalas são os teus olhos fechados
são as ondas por onde sopra o vento e nasce a cor da aurra e o grito gelado das coisas

Dir-te-ei foi agora
cintilante mortal cortado a fogo
e breve
rigoroso


Na sombra repousante
os teus olhos os teus
vãos pensamentos
como um leito avançando sem suporte
ou um navio perdido do dono

Tu partirás primeiro de lado contracenando
e arrastando contigo toda a paisagem
vejo uma águia assustadoramente voando alto
na retina
do vento
vejo o que foi permitido: tocar o horizonte

Amanheceremos fantasmas doutro teatro de sombras
seguiremos imóveis caindo por distracção
de amarra para amarra tomaremos o eléctrico
para o fundo da Terra cidade lúcida e quente
a aí expostos de novo sempre à fúria de curiosos engenhos destruidores
interceptaremos outra vez a vida
digo-te sim faremos girar a Terra
com o polegar nos polos canto telegráfico só captável pelo ar do Karakorum, entre os gelos gigantes do Tibete
e o indicador nos céus realizando o futuro da harmonia
para além de uma lágrima de um adeus com os olhos
numa estação sombria vomitando morte

Dito isto fica um grande espaço vazio
onde o homem está só não já de corpo ou de espírito
mas de todo o murmúrio e todo o espasmo
e então sim contra os vidros
o amor soluça tempestade
deuses cegos assomam às janelas e tombam
sobre o odioso chão que ladra e ladra
uma aurora de cães afivela o teu pulso
e a cobardia responde à cobardia
como a coragem responde à coragem

Um pouco de certo modo por toda a parte
há homens desmaiados ou simplesmente mortos

O AMOR REDIME O MUNDO diziam eles

mas onde está o mundo senão aqui?

Mário Cesariny

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

António Ramos Rosa

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Na tarde erramos

Na tarde erramos,
Nós, tu e eu,
Mas três.
Tão sós que vamos
E não sou eu
Quem vês.

Discreto calo,
P'ra que o meu senso
Louves;
Em vão não falo,
Tanto o que eu penso
Ouves.

Melhor me fora
Que a outro assim
Levasses
E, longe embora,
Sòmente em mim
Pensasses.

Reinaldo Ferreira

domingo, 24 de janeiro de 2010

E eu acreditava

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus

Eugénio de Andrade

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Vivo na esperança de um gesto

Vivo na esperança de um gesto
Que hás-de fazer.
Gesto, claro, é maneira de dizer,
Pois o que importa é o resto
Que esse gesto tem de ter.
Tem que ter sinceridade
Sem parecer premeditado;
E tem que ser convincente,
Mas de maneira diferente
Do discurso preparado.
Sem me alargar, não resisto
À tentação de dizer
Que o gesto não é só isto...
Quando tu, em confusão,
Sabendo que estou à espera,
Me mostras que só hesitas
Por não saber começar,
Que tentações de falar!
Porque enfim, como adivinhas,
Esse gesto eu sei qual é,
Mas se o disser, já não é...

Reinaldo Ferreira

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Nega-me

Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O Constante Diálogo

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado
..................................o semelhante
..................................o diferente
..................................o indiferente
..................................o oposto
..................................o adversário
..................................o surdo-mudo
..................................o possesso
..................................o irracional
..................................o vegetal
..................................o mineral
..................................o inominado

Diálogo consigo mesmo
..................................com a noite
..................................os astros
..................................os mortos
..................................as ideias
..................................o sonho
..................................o passado
..................................o mais que futuro

Escolhe teu diálogo
.................................................e
tua melhor palavra
...........................................ou
teu melhor silêncio.
Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

um poema

Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
De um par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes.

Reinaldo Ferreira

sábado, 2 de janeiro de 2010

desejos

Que venha coragem.