sexta-feira, 3 de abril de 2009

A Noite


Em tudo que já fomos está o que seremos
No fundo desta noite tocam-se os extremos
E se soubermos ver nos sonhos o processo
Os passos para trás não são um retrocesso

A noite é um sinal de tudo quanto fomos
Dos medos. Dos mistérios. Das fadas e dos gnomos
Da ignorância pura e da ciência irmã
Em que sendo passado já somos amanhã

A noite é o espaço vago, o tempo sem história
Em que as perguntas nascem dentro da memória
Em tudo que já fomos está o que seremos
Mas cabe perguntar: foi isto que quisemos?

Em tudo que já fomos está o que deixamos
No fundo das marés. Nos portos que tocamos
O rumo desvendado. O preço da bagagem
É tudo quanto resta para seguir viagem

A noite é parideira da contradição
Que existe em cada sim que nos parece não
Olhando para nós. Os grandes dissidentes
No meio da luta entre lemes e correntes

Será esta viagem feita pelo vento
Será feita por nós, amor e pensamento
O sonho é sempre sonho se nos enganamos
Mas cabe perguntar: como é que aqui chegamos?

Em tudo que já fomos estão os nossos mortos
E os vivos que ficaram entram nos seus corpos
Na noite do amor, na noite do sinal
Naufrágio de fantasmas na pia baptismal

A noite é o impreciso e escuro purgatório
Que alinha as nossas almas no seu dormitório
A culpa dos heróis é serem sempre poucos
Acaso somos mais, ou tão somente loucos

Temos que descasar a culpa e o prazer
No que fizemos ou deixamos de fazer
Para reconstruir os corações cativos
Mas cabe perguntar: acaso estamos vivos?

Em tudo que já fomos há um sonho antigo
Conversa universal de cada um consigo
São sombras e brinquedos, tudo misturado
E o vago sentimento de nascer culpado

Será um sonho absurdo este olhar p'ra dentro
E o nosso destino só servir de exemplo
Andamos a fugir à frente desta vida
Mas cabe perguntar: existe uma saída?

José Mário Branco