quarta-feira, 6 de junho de 2007

O deserto inominável



O deserto é um silêncio depois do mar,
É o êxtase da luz sobre o coração da areia.
Vai-se e volta-se e nada se esquece.
Tudo se oculta para depois se dar a ver
No ponto em que os ventos se cruzam
E as almas gritam no fundo dos poços.
Os cestos sobem e descem prometendo água,
Uma frescura que derrete a febre.
Não são as tâmaras que adoçam a boca,
É a beleza das mulheres dissimulando
O desejo como um pecado sob a escuridão dos véus.
As serpentes assobiam ou cantam
Conforme o veneno que lhes molda o sangue.
Enroscam-se sobre as pedras
como fragmentos de lua à espera da manhã.
E a sombra alonga-se nas dunas
Ondulando rente às palmeiras
Como a última cobra do medo das crianças.
Não há ruído maior que este silêncio
Que se serve com tâmaras e com chá
Na mesa rasteira, sobre a terra molhada.
É no que não se nomeia que está o infinito.

José Jorge Letria

1 comentário:

Elsa Pereira disse...

A CONCHA

A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

VITORINO NEMÉSIO